sábado, 21 de janeiro de 2017

Labirinto verde I


Naquele dia, Kaasi acordou mais cedo ao som de um Bem-te-vi distante e de preocupações alheias. O estômago lhe doía e o futuro lhe apertava a garganta como uma faca de ponta fina próxima à Jugular. Mas, ele apenas desejava uma coisa, fazer a sua caminhada na trilha do parque ecológico. O dia seguiu e outros afazeres lhe distanciaram daquela ideia fixa. Mas, na hora certa como sempre fazia, ele se preparou para o seu ato, quase como um padre preparando-se para a sua liturgia. Colocou as roupas apropriadas, nada demais, calção, camisa e tênis. E às quatro e meia da tarde ele partiu.
As chuvas recentes tinham acordado todos os insetos possíveis, ressuscitados de muitas poças de lama, ou qualquer objeto capaz de abrigar água, seja ele natural, como uma folha, ou trazido pelo homem. Os mosquitos estavam sedentos, indiferentes se iriam transmitir Dengue, Zika, ou coisa que o valha. De tal forma que, para não ser picado tinha que ser rápido no caminhar e nos movimentos dos braços. No entanto, ninguém escapava de umas boas picadas no pescoço e nas canelas.
Em questão de minutos o seu tênis perdeu toda a cor vibrante e os tons laranjas, assim como qualquer outra paleta, ficaram amarronzados pela lama acumulada na trilha. Evitando as poças maiores, ele seguiu pela trilha principal. Já passando da primeira ponte encoberta pelos altos paredões de Mangue-branco e alguns Araticuns-do-brejo, adentrou no túnel formado pelas árvores mais antigas. A sombra tornava o caminhar mais aconchegante naquela parte da trilha, escondendo alguns habitantes costumazes, como a Sericóia. Ave penalta, muito simpática e assustada, vista sempre por ali caçando os seus caramujos, algumas vezes, inclusive, seguida por seus filhotes piando atrás. O cheiro do mangue era único, forte e visceral. Nauseante para narinas despreparadas do frescor da mata.
Já cruzando a segunda ponte, ele desviou-se de algumas pessoas que faziam fotografias para uma gestante, álbum de um gosto duvidoso. Chamou a sua atenção,  a enorme barriga da futura mamãe, a parafernália de roupas e os refletores de luz redondos e prateados. Logo adiante, ele cruzou com dois rapazes, talvez namorados, sentados num banco ao lado da Marizeira seca. Ali, eles se escondiam da cidade que os devorava e discriminava. Ele apertou mais o passo, observando a vegetação de médio porte ao lado das lagoas que davam sinal de vida após as últimas chuvas. Libélulas se reuniam mais a frente, algumas passavam bem perto dele, zunindo como que avisando algo. Os místicos associam as Libélulas às fadas da floresta, os céticos as vêem apenas como parte da cadeia alimentar, mas ele as admirava pela anatomia, na forma de um pequeno dragão voador com asas transparentes. Asas inspiradoras do estilo Art nouveau.
O tempo e a sorte formaram aquele lugar. Renascido não do fogo como a Fênix, mas do sal. Pois ali, há algumas décadas atrás, nada havia, a não ser as Salinas Diogo. E das dunas de sal sobraram apenas o seu formato retangular, de onde brotaram lagoas, e na parte mais alta onde a maré não chegava, duas quadras de futebol foram aos poucos tomando forma e função. Ele cruzou por alguns tijolos, ditos como as ruínas da antiga salina. Observou um grande parafuso encravado nos tijolos, sobrevivente da maresia que o corroía lentamente. Qual seria a função daquele parafuso? Quem o colocara ali? Pensamentos existenciais lhe inundaram a mente e ele dobrou a direita, pegando a trilha em direção ao rio.
Os Soíns faziam-se ouvir com os seus silvos característicos. Eles eram os mamíferos reinantes da trilha, ali eles sobreviviam, faziam suas algazarras e se reproduziam, quase como seres mutantes, resilientes à poluição e ao descaso. Já próximo do rio, a respiração da cidade era quase esquecida, o vento fazia ranger os galhos mais altos do mangue, tornando a natureza plena. Sob os seus pés, Aratus se escondiam apressados em suas tocas, deixando apenas pequenos pontos vermelhos de suas patas amostra. No âmago da mata a Sabiá melosa fazia a sua sinfonia. Lentamente, pausadamente, ela cantava, quase como uma sereia a encantar pescadores, os prendendo eternamente em alto mar. Mas ele seguiu em frente, esbarrando no rio Cocó. Placas educativas davam muitas informações, distância da foz do rio, hectares etc. Coisas desnecessárias, pois ali, bastava apenas admirar em volta, respirar fundo e perceber que tudo aquilo era muito importante para o planeta. Parado por alguns segundos, um mosquito lhe picou no braço, mas ele ficou vendo os Pemas aflorando esporadicamente do rio, os Martins pescadores surgindo do nada e as Garças brancas começando sua jornada para a longa noite. Vendo a correnteza passando lentamente, levando galhos secos, Aguapés e restos da cidade, ele lembrou de Heráclito, do rio que nunca mais seria o mesmo e dele próprio que também já mudara... CONTINUA

Isaac Furtado

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