terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Estética e Paixão


A dificuldade em lidar com dois conceitos de caráter tão pessoal, como a estética e a paixão, é que torna este assunto tão fascinante. A importância da estética na investigação filosófica é compartilhada com a ética e a lógica, que caminham mais nos trilhos da razão. A origem grega aisthesis significa “percepção através dos sentidos e/ou dos sentimentos”. Logo, a beleza não é apenas a imagem impressa na retina, mas, elaborada e fixada de forma prazerosa, apaixonante, no córtex cerebral. A complexidade de enquadramento dos padrões de beleza é que, talvez, tenha retardado a criação do conceito “estética”. Que, só foi utilizado em 1750, pelo filósofo Alexander Baumgarten, ao nomear a obra Aesthetica, abordando a disciplina que procurava sistematizar as diversidades da beleza de forma racional. Thomas Mann, no livro “Morte em Veneza” falava que das quatro virtudes (bondade, beleza, sabedoria e verdade), onde, a única que era percebida por meio dos sentidos, era a beleza.
        O assunto é universal, impossível de não ser comentado por qualquer ser humano, independente de sua cultura, classe social, ou instrução. Mesmo com o conceito: “beleza não se discute”, não ficamos apáticos (ausentes de paixão), e ao comentarmos sobre a beleza existe sempre uma primeira impressão processada em nossa mente, que automaticamente responde: é belo, ou é feio. Mas, baseado em que experiência nós emitimos este comentário de forma tão imediata? Que necessidade temos de nos embelezarmos com os ternos Armani, usados pelos homens de negócio de Wall street , ou trajando apenas um estranho batoque labial, usado pelos índios Caiapós? Com piercings, tatuagens, pinturas de guerra, cosméticos e cirurgias plásticas? Desde quando o Homo sapiens admira suas obras rupestres e o seu semelhante? Será que este sentimento nos remete mais remotamente? Três milhões e meio de anos atrás, aos olhos de Lucy, que aceitava seu parceiro pela estrutura forte, proporcional e bela, com o intuito de perpetuar sua espécie. Assim, como fazem as aves com suas plumas coloridas, os alces com seus enormes chifres simétricos, para impressionar suas fêmeas. E desta forma, desde que foi desenvolvida a reprodução sexuada para multiplicação das espécies, a beleza é imprescindível e ligada a boa saúde de qualquer animal ou vegetal? Mas quando a paixão foi adicionada a este sentimento de atração física na evolução do homem?
Nos dias de hoje, aquilo que vemos no nosso semelhante não é apenas a ação da evolução das espécies, mas da nossa espécie capaz de realizar um face-lift, paralisar rugas de uma senhora de meia-idade, ou apenas na capacidade de apreciar a beleza do sorriso de um bebê, ou a serenidade nos cabelos muito brancos de nossas avós. Esta beleza, que nos afeta de maneira apaixonante, é antropológica e divina, é cultural e genética, é moderna e imemorial. Na mitologia Grega, Paris, no julgamento daquela que seria eleita a mais bela, abnegou o poder e a sabedoria oferecidos pelas concorrentes, elegendo Afrodite, que lhe prometera a mulher mais bela, Helena. E assim, foi a origem mítica da primeira guerra, Troia.


Lucy. Trabalho em acrílica e colagem. 140/120cm. Isaac Furtado

Segundo Baudelaire, a beleza tem sempre dois elementos, o eterno invariável, e o elemento circunstancial relativo, variando com a idade, a moda, a moral e as emoções. E sempre nos remetemos ao campo das paixões. Nietzsche, na obra O nascimento da tragédia, estabeleceu uma síntese sobre as belezas apolínea e dionisíaca, não as colocando como opostas, mas complementares. A beleza apolínea, geométrica e canônica, seria completada pela beleza dionisíaca, alegre, perigosa, diria até insana, e que foi oculta até a idade moderna. Onde a ideia de eternidade era uma potência criadora de beleza. Hegel, já falava que “o prazer com o belo é um deleite narcísico”. Mas, estar belo é estar em harmonia apenas na superfície, pois internamente nenhum ouro nos orna, não há brilho onde não há luz. A escuridão interior é inconsciente, nem feia nem bela, é um Hades a ser transposto por Orfeus em busca de sua paixão, sua beleza personificada na imagem de Eurídice. E esta viajem que muitos temem fazer, não apenas em busca do “self”, do resgate da sua beleza, materializada na busca da verdadeira paixão, do amor.
Kant, não reconhecia o belo como valor absoluto, para ele existiam dois tipos de sensações: a aisthesis e a estética. A sensação aisthesis é sensível, empírica, e objetiva (ligada ao objeto), ligada às coisas lógicas que formam um juízo determinante, com uma exigência de universalidade e de necessidade. E a sensação estética referente à ciência do belo, subjetiva, na fruição do prazer e desprazer, e ligada ao sujeito para formar um juízo estético/reflexivo sem interesse em sua função, onde um objeto é simplesmente belo. Ele classificou a beleza em natural e artística. A primeira sendo simplesmente a coisa bela, e a segunda uma bela representação de uma coisa( a obra de arte).
Longe do conceito de Platão e de Aristóteles, que consideravam a beleza proporcional a bondade, valorizando a contemplação da natureza e tendo a sabedoria como forma mais sublime da beleza, hoje cuidamos muito da estética, mas, sem questionar seu valor real, seja numa visão cosmológica ou antropológica.
Existem muitos prismas para definir o belo (semântico, psicológico, metafísico, ético, axiológico). Porém, é esta retórica bela e apaixonante, com múltiplas definições que nos faz esquecer do seu oposto, a feldade. E como diria um cearense legítimo “Oh bicho feio!”, na sua mais espontânea exclamação diante de alguém desprovido daquilo que temos como beleza. Nos causando repulsa. O termo “feiura” em latim foeditas, que quer dizer “sujeira”, “vergonha”. Em francês, laideur vem do verbo laedere, que significa “ferir. E Hässlichkeit, em alemão deriva de Hass, que significa ”ódio”. Apetite irascível, segundo Tomás de Aquino, que remete ao oposto do amor, assim como a fuga e o desejo, a tristeza e o prazer. Esta incompletude é cada vez mais notada pela exposição na mídia de modelos com seus rostos e corpos esguios que moldam os padrões de beleza. E aos mortais que serão devorados por Cronos inevitavelmente, e se sentem inferiorizados, cabe apenas a busca ao consumo capitalista para embelezar seu corpo externamente, buscando a mudança do contorno corporal desenfreadamente em academias de ginástica, ou no bisturi dos cirurgiões plásticos. Mas qual o limite da beleza? Que mal existe em quer melhorar sua imagem, sua autoestima? Até onde nossas imperfeições nos tornam culpados? Onde se encontra a identidade de alguém após um transplante de face? Qual o limite da nossa paixão pela estética? 

Isaac Furtado
Artigo publicado no Jornal Gazeta do Centro-Oeste, 19/04/11    

              


Bibliografia:

  1. A Lei do mais belo: A ciência da beleza. Nancy Etcoff. 1999
  2. A História da Beleza. Umberto Eco. 2004