quarta-feira, 23 de maio de 2018

As portas da percepção


O olhar representa o sentido mais importante, pelo menos para mim e para muitos artistas. O sentido da visão é estimulado sempre e enquanto estamos acordados, sendo nossa janela, nossa percepção do mundo. Olhar que a cada dia temos que deixar mais aberto e atento às mudanças. Olhar que deve ser cristalino, sempre consciente e sereno. Discordo do livro As Portas da Percepção (The Doors of Perception), de Aldous Huxley escrito em 1954, cujo título foi inspirado em uma frase de William Blake: “Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito”. O conceito de Huxley estimulava experiências alucinatórias com drogas, como a Mescalina utilizada por muitos artistas da época com o intuito de “limpar” as portas da percepção. O meu conceito é diferente, devemos limpar as portas da nossa percepção de forma consciente, através do autoconhecimento. Com as minhas " Portas da Percepção " busco a lucidez, a criatividade cristalina e o talento como inspiradores da arte de uma maneira pura. Pois, diante dos nossos sentidos só nos restam os sonhos.
Existem outras maneiras mais saudáveis de abrir essas portas, como a meditação, a contemplação da natureza, o relaxamento e os jejuns. É exatamente fechando os olhos, afastando-se dos estímulos sensoriais (sons, cheiros, estímulos táteis) que podemos focar mais na essência das coisas. Para depois fazer a interpretação e a transmutação do interior para o exterior, abrindo assim as portas da percepção sem distorções. Pois, transformar não necessariamente implica em deformar. O mais importante no entanto, é nunca trancar as portas. Deixar o fluxo das informações fluir, deixar a passagem livre. Pois, um dia essa passagem será definitiva.

Isaac Furtado

Arte: Painel “As Portas da Percepção” é formado por quatro partes semelhantes à portas, com o total de 2.20/2.20m. Tinta Acrílica sobre madeira. 2018.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Labirintos verdes II


Alguns meses se passaram da sua última parada nas margens do rio. Após seis longos anos de estiagem, a chuva desabou dos céus aos borbotões.Trazendo vida em abundância e verdes de todos os nuances possíveis. A copa da Marizeira estava plena, dando uma sombra aprazível no banco de madeira ao lado, sempre ocupado. Apesar dos reparos e poda das árvores, a trilha estava mais estreita, pois a vegetação parecia ignorar o seu limite. Os Avencões com as suas longas palmas, pareciam querer abraçar os transeuntes. Cipós despencavam do alto, fazendo tranças e cortinas vivas. A vida parecia perfeita e incólume dentro daquela ilha incrustada no coração da metrópole. Cidade sufocada pelos males dos homens, sufocada pela intolerância, pela ignorância, arrogância, ânsia de vômito, somente aliviada pelo cheiro do mato, que aumenta à medida que penetramos os caminhos soltos do mangue. Refúgio de vida que transborda e nos ensina que - basta caminhar sereno, ouvindo os pássaros, sentindo a brisa molhada, observando as garças pescando, ouvindo o silvo dos soins. Porém, mesmo no centro do parque ainda ouvimos vestígios da civilização.

Anseio permanecer muitos anos por aqui, meditar pela trilha, caminhando através de pensamentos serenos. Sei que o tempo é implacável e, às vezes, quebra pontes sem querer. No entanto, aquele galho pesado que pende e cai depois do chuva, é apenas uma transformação, um desvio sem danos. Muito diferente das tempestades que assolam a cidade, atônita pela violência. E todos comentam - Que saudade do tempo em que ao invés de grades e muros, nós colocávamos cadeiras nas calçadas!

Isaac Furtado